quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Passando o Cerol

Contemplando a molecada soltando cafifa*, fiquei imaginando algumas coisas. Por que será que sempre existe alguém que não se contenta em “apenas” brincar? A sensação de liberdade ao empinar aquele conjunto de papel, bambu, cola e linha é uma das coisas mais memoráveis de qualquer infância saudável. Mas, opa, “estancou”! Lá vai a raia** “voada”. Aquela turma de pequenos, médios e até mesmo grandes sai em desabalada carreira produzindo um estrondo de cavalaria. E, menos de 5 minutos depois, a cena se repete. É ele, o cerol impiedoso, fazendo suas vítimas.

Ah, eu já fui moleque também. Não era um exímio “soltador de cafifa”; mas me virava. E também usava o cerol; nem sempre; naquele tempo – isto se parece com a introdução da leitura bíblica que o padre faz aos domingos– o cerol ainda não tinha virado vilão, embora já fizesse seus estragos além de derrotar os “adversários” depois de se torar***. 

Na F1 as coisas não são muito diferentes. Qualquer mortal já se daria por satisfeito em guiar uma máquina daquelas numa reta famosa. Já se imaginou fazendo a Parabólica e ganhando a reta de Monza, pé embaixo, superando os 300 km/h? É. Mas os moleques de capacete não se contentam em brincar apenas. É preciso passar o cerol na concorrência.
Na história moderna da F1 (período que considero a partir dos anos 80), o cerol mais eficiente foi a Suspensão Ativa da Williams de 1992. Aquele dispositivo redefiniu a concepção de um F1 como ‘auto-móvel’. Ano após ano, os gênios da projeção buscam aperfeiçoar a eficiência dos bólidos dentro das regras impostas. Às vezes, surgem boatos, reinterpretações de regulamento e outros tipos de “acoxambramento” que acabam permitindo que as máquinas sigam para as pistas mesmo que sob desconfianças de alguns. Recentemente, asas móveis/flexíveis estiveram no “olho do furacão”. O grande furo de olho, porém, foi dado pela McLaren ao introduzir a famosa engenhosidade do duto frontal. Uma espécie de cerol que deu trabalho pra concorrência. Para 2011, estamos todos no aguardo para descobrir quem será o primeiro a “passar o cerol na linha” e desafiar os demais. Claro que poderemos ter um duelo entre ceróis. Vence o mais eficiente.

Fazer o melhor cerol é tarefa árdua. Na F1 e na brincadeira da cafifa. Não posso aqui “ensinar” como fazer cerol porque é uma prática enquadrada pelo ordenamento jurídico como um delito. A polícia até mesmo o trata como crime. Mas, ao final de todo o processo, lá estava o “pó branco do mal” – nenhuma alusão a entorpecentes, bem entendido. O objetivo fina, na cafifa e na F1, é sair cortando todo mundo. E, terminar o dia como herói do pedaço, “o cara” que, desafiando os contendedores, grita aos quatro cantos: “bota outra, mané!”


Em tempo: este pequeno texto é apenas uma alegoria. O uso do cerol, embora ainda muito difundido, é uma prática que tem posto em risco a saúde e mesmo a vida de muitas pessoas. Nos meus bons e inesquecíveis tempos de criança, nunca presenciei algo realmente grave. Não tinha a idéia do imenso perigo. Hoje, porém, com a internet, ninguém mais consegue ser inocente. Nem mesmo as crianças. Cerol pode matar. Assim, vamos deixar as coisas apenas no campo da analogia. E torcer pra que tenhamos uma temporada de belos duelos dentro das regras.




*CAFIFA: do latim, papagayus pairanteaes. Mais conhecida como pipa.

**Raia: um dos muitos tipos de cafifa. Além da raia, a mais popular em minha região havia o Morcego, a Baratinha, o Peão, a Cortadeira, o Folhão...

***Torar: Uma corruptela de Tourear, um duelo. 

Definições explicativas retiradas de minha cabeça de lata e suas memórias póstumas de um ciborgue.

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